Enfermeira aceitou ficha do 1º paciente a morrer na fila por leito em SP 19 minutos após óbito: 'É correr contra o tempo, e perder'
24/03/2021 09:43 em Brasil

A transferência do paciente Renan Cardoso, que aguardava um leito de UTI para Covid-19 em São Paulo, foi aprovada pela enfermeira Andreza Sécolo minutos antes da morte do jovem de 22 anos. Renan morreu no dia 13 de março e, segundo a prefeitura, foi o primeiro caso de morte na fila por leito na cidade. Sua solicitação de leito foi aprovada às 17h38 – 19 minutos após sua morte, confirmada às 17h19 do mesmo dia.

Responsável pela avaliação de pedidos de transferência em um hospital de campanha na Zona Sul da capital, Andreza disse, em entrevista ao G1, que estava de plantão no sábado em que chegou o pedido de leito para Renan.

 

"Quando chegou a ficha do Renan, a gente ficou desesperado porque a gente percebeu que era um paciente grave que estava numa unidade que não tinha esse preparo. Era um paciente obeso que estava há dois dias em uma cadeira, sem suporte respiratório adequado. Então a gente conversou com a supervisão para agilizar e, assim que liberou a vaga, nós ligamos na unidade de São Mateus em que ele estava. E aí nós fomos informados que ele tinha acabado de morrer", lembra a enfermeira.

 

"A gente tomou um balde de água fria, porque a gente estava com a esperança de dar para o Renan o atendimento que ele precisava. Foi uma das piores sensações, de toda essa tristeza que a gente tá vivendo, essa foi um marco. Foi de novo a sensação de impotência, de correr contra o tempo, e perder", completa.

 

Enfermeira Andreza Sécolo lamenta a morte de Renan Cardoso em postagem nas redes sociais — Foto: Reprodução/Facebook

Enfermeira Andreza Sécolo lamenta a morte de Renan Cardoso em postagem nas redes sociais — Foto: Reprodução/Facebook

Renan Ribeiro Cardoso, de 22 anos, morreu dois dias após dar entrada no Pronto Atendimento de São Mateus, na Zona Leste da capital paulista. Ele chegou à unidade em estado grave.

 

Sistema de regulação de vagas

 

Renan Cardoso, que morreu de Covid-19 em uma UPA na Zona Leste, aguardando um leito de UTI — Foto: Arquivo Pessoal

Renan Cardoso, que morreu de Covid-19 em uma UPA na Zona Leste, aguardando um leito de UTI — Foto: Arquivo Pessoal

A disponibilidade de leitos de enfermaria e UTI no estado de São Paulo é regulada pelo Sistema Cross. Por meio desta ferramenta, as unidades de saúde registram pedidos de transferência, onde informam as condições dos pacientes e qual tipo de leito eles necessitam. A central encaminha os pedidos para outros serviços de saúde, em que enfermeiros e médicos reguladores analisam as fichas.

A enfermeira Andreza Sécolo trabalha neste setor em um hospital de campanha na Zona Sul da capital. Ela afirma que, para agilizar as transferências, diversas unidades de saúde têm feito ligações diretamente para os hospitais.

 

"Além dos pedidos pelo sistema, a gente tá recebendo muito essas ligações desesperadas também. É muita pressão, a gente tenta manter o foco e pensar nos critérios, pacientes que estão evoluindo para um quadro mais grave, que vão precisar de um respirador. É essa briga porque às vezes a gente tem uma ou duas vagas e a gente já recebeu 10 ligações", explica Andreza.

 

"É uma tristeza muito grande, a gente acaba o plantão e vê na TV os rostos das famílias que não conseguiram uma vaga, que nós não pudemos acolher", completa.

Andreza conta que, mesmo com leitos disponíveis, nem sempre é possível aceitar um pedido de transferência, porque o quadro clínico do paciente pode não ser compatível com a estrutura do hospital.

"A gente prioriza os mais urgentes, mas dentro disso tem que ver quais são os que a gente tem capacidade de suportar. Então às vezes a gente está sem máquina de hemodiálise, e o paciente precisa disso, então precisamos ver esses detalhes. Mesmo quando tem vaga, a gente nem sempre pode aceitar, por conta das condições do nosso hospital, que está no limite", explica.

Além disso, Andreza destaca que nem sempre o trâmite para aceitar a transferência ocorre em tempo hábil. Ela se lembra do caso de uma mãe e uma filha com Covid-19 que seriam transferidas para a unidade em que ela trabalha como enfermeira reguladora.

"Era uma mãe e filha que estavam com Covid em uma UPA. A filha precisava de um leito de enfermaria, e a gente conseguiu, mas ela chegou já perguntando da mãe. Assim que liberou um leito de UTI, aceitamos a ficha da mãe, mas ela já tinha morrido, e aí foi horrível contar a notícia para a filha internada", afirma.

Profissional de saúde cuida de paciente com Covid-19 no Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, no dia 17 de março. — Foto: Michael Schincariol/AFP

Profissional de saúde cuida de paciente com Covid-19 no Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, no dia 17 de março. — Foto: Michael Schincariol/AFP

 

Falta de oxigênio

 

A enfermeira conta que, em um hospital municipal na Zona Leste, onde ela trabalha, a reserva de oxigênio da unidade chegou a um nível crítico no último sábado (20), e toda a equipe do hospital teve que se mobilizar para garantir cilindros reservas para os pacientes.

Cilindros de oxigênio na UPA Zilda Arns, no Jardim Santo Eduardo em Embu das Artes (SP), nesta segunda-feira (15).    — Foto: EVERALDO SILVA/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

Cilindros de oxigênio na UPA Zilda Arns, no Jardim Santo Eduardo em Embu das Artes (SP), nesta segunda-feira (15). — Foto: EVERALDO SILVA/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

"Foi uma correria. Chefia, funcionários, todo mundo atrás de cilindros para ligar os pacientes. Deixamos só os intubados na rede que é ligada ao tanque e todo os outros ligamos em cilindros individuais", conta.

"Começou a apitar o alarme do hospital todo, todos os respiradores apitando juntos. Era uma cena de terror. Esse dia foi o pior que a gente teve, esse sábado. Foi traumatizante o medo que a gente sentiu de faltar oxigênio pros pacientes", lembra Andreza.

 

Hospitais e profissionais no limite

 

O estado de São Paulo registrou 9.130 mortes provocadas pela Covid-19 no mês de março que, mesmo antes de acabar, já se tornou o pior mês da pandemia no estado.

Além das mortes, o número de pacientes internados também está em ascensão: o total de internados com Covid-19 mais que dobrou no estado de São Paulo em apenas um mês. Nesta segunda (22), 29.039 pessoas ocupavam leitos destinados à doença. No dia 22 de fevereiro, eram 13.606.

A taxa de ocupação dos hospitais também revela um sistema de saúde operando no limite: na Grande São Paulo, 91,7% dos leitos de UTI para Covid-19 estavam ocupados nesta terça-feira (23). Em todo o estado, a taxa média foi ainda maior: 92,3%.

Para a enfermeira Andreza Sécolo, os dados mostram a realidade de um sistema que já não é capaz de absorver mais pacientes.

"Não tem pra onde correr, pra onde pedir material emprestado. O que está faltando é porque está faltando no Brasil inteiro", lamenta.

 

Pressão psicológica

 

A angústia e ansiedade relatadas pela enfermeira Andreza Sécolo são comuns entre profissionais de saúde na linha de frente da Covid-19. Uma pesquisa da Fiocruz feita com 15 mil trabalhadores da saúde de nível superior, a maioria médicos e enfermeiros, revelou que, para a maioria, está difícil dormir, o choro é frequente, e às vezes o estresse e pensamentos negativos ameaçam dominar.

 

"Eu tenho certeza que quando isso acabar todos os profissionais de saúde vão precisar de um suporte psicológico, porque é muita pressão. É muita sobrecarga", afirma Andreza.

 

 

"A gente vai precisar de socorro, porque estamos há um ano prestando assistência, mas, quando isso acabar, nosso físico e nosso emocional vão estar completamente esgotados. Os pacientes seremos nós. Eu espero que venha uma gratidão de todos, um cuidado, não adianta romantizar, bater palma, e depois se esquecerem de nós. Nós não somos super heróis", diz a enfermeira.

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